O Nego Fugido é uma manifestação da cultura popular que há mais cem anos é mantida pelos pescadores de Acupe, distrito de Santo Amaro da Purificação (BA). Uma espécie de catarse pública que, ao misturar elementos da dança, teatro, música e declamação, conta uma versão peculiar da história do Brasil que compreende a aquisição da liberdade pelos negros como um processo de revolta, luta e resistência.
Nessa narrativa, entrelaçam-se a memória coletiva da comunidade, a prática da pesca artesanal e as práticas religiosas e culturais afro-brasileiras da região, cuja memória do passado escravo da região do recôncavo baiano articula-se aos problemas sociais, culturais e políticos atuais vividos pelos moradores.
Há mais de um século, sempre no período do mês de julho, as ruas do distrito de Acupe transformam-se num grande cenário a céu aberto para o Nego Fugido, que se apresenta ao lado das mais variadas manifestações de cultura popular como Samba de Roda, Mandus, Bombachos, Burrinhas, grupos de Capoeira, Maculelê e Caretas. Acupe é uma comunidade quilombola encravada na Baía de Todos os Santos originada a partir da abolição da escravatura, com uma população de mais ou menos 13 mil habitantes, na sua maioria pescadores e marisqueiras. Um território de cruzamentos de sistemas simbólicos africanos, europeus e indígenas.
Pólo agregador de ritos e costumes, berçário das mais variadas manifestações culturais e artísticas, sem, contudo, perder sua marcante identidade afro-brasileira, características que foram fundamentais para a formação da identidade cultural da região. Um local ocupado por pessoas que compartilham a memória sobre o período da escravidão e que, através do Nego Fugido, externam suas próprias impressões sobre a instituição escravista e a forma pela qual o escravo teria viabilizado sua liberdade.
Desde de 2005 a Associação Cultural Nego Fugido vem firmando parcerias com instituições públicas, ONG e movimentos sociais através de palestras, oficinas e apresentações culturais, visando promover uma rede de discussões e reflexões a respeito do reconhecimento da importâncias do Nego Fugido para a formação da identidade da população do recôncavo e, por conseguinte, a elaboração de um projeto de registro da manifestação como Patrimônio Imaterial Nacional.
A construção da Casa do Nego Fugido - Centro de Estudos e Práticas Afro-Brasileiras entrecruza-se a uma série de ações que visam a promoção de um espaço público que possibilite constantes debates sobre questões sociais, políticas públicas culturais, ambientais, religiosas e de identidade no recôncavo baiano; estabelecer parcerias com universidades públicas para realização de atividades de formação profissional dos moradores de Acupe e cidades vizinhas, além da capacitação e formação educadores voltados para os estudos da cultura afro-brasileira, estimulando, através de bolsas de pesquisa, a participação de professores e alunos dessas universidades no desenvolvimento de cursos e oficinas a serem realizadas pela casa do Nego Fugido.
A Casa Nego Fugido objetiva a valorização dos saberes e fazeres dos protagonistas da cultura tradicional através da assistência às atividades sociais e culturais que já são desenvolvidas pelos brincantes da comunidade, assegurando que os conhecimentos culturais sejam transmitidos de geração em geração e constantemente recriados em função de seu ambiente e de sua interação com a natureza e com sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade.
Ela será um espaço de fomento do saber e do fazer das tradições e novas tradições da cultura popular através de atividades culturais e educativas diárias e exposição permanente de tambores utilizado nas festa de terreiros nas várias regiões do Brasil (exposição batuques), além de abrigar uma biblioteca com acervo especializado na pesquisa sobre a cultura afro-brasileira.
Nesses sete anos preparando e semeando o solo, Associação cultural Nego Fugido tem avançado de forma significativa no amadurecimento desta proposta, participando de eventos nacionais e internacional importantes como o ECUM (Encontro Mundial das Artes Cênicas) em 2008 em Minas Gerais, seminário Universidade de Verão da Pró-reitoria de Extensão da UFBA, Museu Afro, em São Paulo.
Conquistamos prêmio internacional como Cidade Mundial da Paz da fundação italiana Opera Campana Dei Caduti em 2009; atraímos para Acupe pesquisadores importantes como Eugenio Barba (Odin Teatre), Pino Di Budo (teatro Potlach), John C. Dawsey (professor da USP), Marianna Monteiro (professora da UNESP), Paulo Dias (presidente da Associação Cultural Cachuera!) e adquirimos um terreino financiado com recursos próprios para a construção da casa Nego Fugido.
Integra-se a esse plano de ações a produção de textos acadêmicos, mestrado (em andamento) e doutorado, potencializando as discussões em torno do projeto de reconhecimento do Nego Fugido como patrimônio Imaterial Nacional. Muito já foi feito nesse canteiro de obras. Solo preparado e semeado, agora é momento de arregaçar as mangas e colocar mãos à obra.
Sua participação e colaboração são tijolos que sustentam o alicerce do que acreditamos e lutamos, assim como propõe o Nego Fugido : “Olha aê sibuatã tire a casaca de sibuatã”.